O governador provincial da Lunda Norte, Ernesto Muangala, apelou (como se o MPLA soubesse o que isso é) ao diálogo e reconciliação na vila mineira de Cafunfo, onde há um mês incidentes com a polícia provocaram um número indeterminado de mortes, afirmando que “é hora de sarar as feridas”.
Ernesto Muangala falava hoje em Cafunfo, perante mais de 500 pessoas, entre membros do executivo e autoridades eclesiásticas, oficiais da polícia, sobas e habitantes locais, que se juntaram hoje no salão 4 de Abril para reflectir sobre os acontecimentos (massacre é o termo mais exacto) de 30 de Janeiro.
As versões divergem sobre se foi um ataque à esquadra de polícia num acto de rebelião armada como defende o Governo, ou massacre de manifestantes, tal como o número de mortes, que variam entre os seis contabilizados pelas autoridades policiais e os cerca de vinte relatados por activistas, membros da sociedade civil, religiosos, organizações internacionais e partidos da oposição angolana.
Abrindo as jornadas organizadas pelo Ufolo — Centro de Estudos para a Boa Governação, em parceria com o Comando Geral da Polícia Nacional, com um discurso centrado na união e apelos à reconciliação, Ernesto Muangala focou-se na defesa da segurança (segurança que, na terminologia interna do Polícia Nacional do MPLA é pôr a razão da força acima da força da razão) como uma necessidade básica do ser humano e condição essencial para o exercício de direitos.
“Trazemos todos nós marcas nos corações, sulcados pelos conflitos armados” (estaria a pensar nos massacres de 27 de Maio de 1977 ordenado por Agostinho Neto?), vincou o responsável da Lunda Norte, sublinhando que deve ser desencorajada “a prática de todos os actos que atentem contra a segurança e soberania nacional, contra a Constituição e contra a lei”.
Defendendo uma “Angola una e indivisível” (tal como Salazar defendia um Portugal “uno e indivisível” incluindo Angola), o discurso de Ernesto Muangala contou com aplausos de parte do público presente em alguns momentos, mas gerou também burburinho discordante em alguns momentos, em particular ao falar sobre as receitas dos diamantes, acções do Executivo a nível das infra-estruturas e as obras na estrada que ligará Cafunfo até à fronteira com a República Democrática do Congo, “cujos trabalhos se iniciarão amanhã [quarta-feira]”.
O governador da Lunda Norte afirmou que as reivindicações e pretensões contrárias aos interesses de Angola “nunca terão respaldo no passado histórico nem nas tradições dos angolanos” e falou sobre o desenvolvimento da província, elencando várias obras.
“Não nos parece justo propalar que o Executivo angolano não tenha planificado o desenvolvimento para a nossa província”, sublinhou. Destacou que a mudança só poderá ser feita “com a força do diálogo”, visando sobretudo aqueles que fizeram apelo à violência para promover os seus fins, numa alusão ao Movimento Protectorado da Lunda Tchokwe, que o Governo angolano responsabiliza pelo “acto de rebelião” de 30 de Janeiro.
“Sentimos neste momento dor pelo que aconteceu nestas terras”, continuou o governador, apelando à reconciliação, diálogo e luta contra as assimetrias.
“Não oponhais resistência à reconciliação”, enfatizou, dirigindo-se ao povo de Cafunfo presente na sala, afirmando que “é hora de sarar feridas” e abrirem-se à convivência.
UNITA, MPLA e Cafunfo (por exemplo)
Em Dezembro de 2017, a UNITA alertou que 1.080 menores morreram vítimas de uma doença “com sintomas de malária” entre Setembro e Novembro num único município do leste, acusação desmentida pelo governador provincial da Lunda Norte.
O alerta da UNITA consta de um relatório produzido por deputados daquele partido que visitaram o município diamantífero do Cuango, na província da Lunda Norte, para “constatar, no terreno, denúncias sobre uma epidemia” que atingiu essencialmente a vila de Cafunfo.
No relatório, divulgado pelo grupo parlamentar da UNITA, então liderado pelo deputado Adalberto da Costa Júnior, é referido que “há efectivamente uma doença com sintomas de malária a matar cinco a 12 crianças por dia” no Cuango, a qual “se torna estranha na medida em que ela actua de maneira muito rápida levando à morte as suas vítimas”.
Entre 1 de Setembro e 29 de Novembro de 2017, “terão perecido 1.080 crianças”, com idades até 17 anos, afirmou a UNITA, cujos deputados se reuniram com famílias das vítimas, administradores locais, clínicos e autoridades tradicionais e religiosas.
“A situação actual vivida no município do Cuango é o resultado de uma governação irresponsável, uma governação sem norte e sem projectos sociais coerentes e, até, o sinal evidente de que as autarquias em Angola devem ser implementadas com alguma urgência. As populações consomem água imprópria”, acusou a UNITA no relatório.
Como não poderia deixar de ser, o governador da província da Lunda Norte, Ernesto Muangala, negou estas acusações, garantindo que no hospital de Cafunfo, entre 1 de Janeiro e 30 de Novembro, registaram-se 74 óbitos de crianças por malária, com “maioritariamente” até cinco anos de idade.
Novembro de 2018
“Estávamos a brincar na rua, com os nossos brinquedos, quando vimos a polícia a disparar à nossa frente. Estavam a dar tiros contra as pessoas que estavam a marchar na estrada grande. Éramos dez crianças e fugimos para casa. Deixámos os nossos brinquedos na rua”, conta Teresa Adolfo, de 10 anos, depois de ter presenciado o tiroteio de duas horas que no dia 17 de Novembro de 2018 aterrorizou a vila de Cafunfo.
Forças combinadas das Forças Armadas Angolanas (FAA), Polícia de Intervenção Rápida (PIR), Polícia de Guarda Fronteira (PGF) e agentes da ordem pública (Polícia Nacional) intervieram para dispersar uma marcha pacífica de cerca de 300 simpatizantes (em 2021 o número é o mesmo, 300) do Movimento do Protectorado Lunda-Tchokwé, uma organização que reivindica a autonomia da região das Lundas, “como a Escócia no Reino Unido”.
Neves Bihihia dirigia-se à farmácia, situada na via principal (Estrada Grande), quando foi atingido no pé direito por um agente identificado como sendo da PIR. Na altura, os correspondentes comunitários do Maka Angola deslocaram-se ao Hospital Regional de Cafunfo, onde foram informados sobre o estado crítico do Neves Bihihia. O paciente foi isolado e estava sob forte guarda policial.
Pouco antes das 8h00, os manifestantes partiram do Bairro da Elevação rumo à vila de Cafunfo, com efectivos militares e policiais no seu encalço. “As FAA, que inicialmente estavam a seguir os manifestantes, não aguentaram e chamaram a PIR, a PGF e a polícia de ordem pública”, relatou o pastor protestante Martinho Rafael, de 37 anos.
“Cercaram os manifestantes nas imediações da estrada principal da vila de Cafunfo e aí iniciaram os tiros por volta das 8h00. Os homens e as mulheres do protectorado dispersaram a tempo”, referiu o mesmo pastor.
Segundo Martinho Rafael, que levava a sua motorizada à oficina, “os militares e polícias, de vergonha, começaram a prender inocentes e a espancá-los de forma brutal porque ‘desconseguiram’ prender os homens do protectorado”. O pastor conta ainda ter testemunhado o brutal espancamento de um adolescente seu conhecido por efectivos da PIR, mas cujo nome lhe escapa, que fugia dos tiros e nada tinha a ver com a manifestação. “Tinham de espancar e prender alguém para incluir no relatório deles. Não detiveram os do protectorado que estavam na manifestação”, asseverou.
O activista cívico Salvador Fragoso disse que o tiroteio de duas horas “fez lembrar a população de Cafunfo sobre a época da guerra civil. Não havia nada que justificasse duas horas de tiros. Contra quem? Estamos com muito medo”.
Sabino Manuel, um conhecido comerciante local que se encontrava à porta do seu estabelecimento na hora do tiroteio, foi um dos 14 elementos detidos. “O irmão Sabino é um comerciante bem conhecido, até pelos oficiais e agentes da Polícia Nacional. Nós, activistas locais, também conhecemos muito bem este homem e sabemos que nunca teve simpatias pelo movimento regionalista de José Mateus Zecamutchima, o líder do Protectorado da Lunda-Tchokwé. O irmão Sabino é de Benguela”, denuncia Jordan Muacabinza.
Com o anúncio antecipado da manifestação, a vila de Cafunfo acordou em estado de sítio.
“Parece que estamos em situação de guerra aqui em Cafunfo. As ruas estão militarizadas. Não há livre circulação de pessoas. Os populares continuam a ser intimidados”, afirmou Jordan Muacabinza.
Segundo Salvador Fragoso, “os homens do Protectorado avisam que vão fazer uma manifestação e, muitas vezes, nem saem do quintal, onde ficam a entoar cânticos, em frente da casa de um dos líderes, André Zende, ou num espaço aberto. Mas isto é suficiente para colocar todas as forças de defesa e segurança em estado de alerta máximo e de guerra”.
Na altura o Maka Angola contactou por via telefónica o comandante da Esquadra de Cafunfo para ouvir a versão oficial sobre o tiroteio: “Para mais informações, ligue ao comando municipal”, e desligou abruptamente o telefone.
A 26 de Junho de 2017, durante a repressão de uma manifestação do Protectorado no Cuango, um dos seguranças do chefe de Operações do Comando Municipal do Cuango, João Mazanga, matou Pimbi Txifutxi, de 35 anos, com um tiro no abdómen, quando este saía da igreja, de bíblia na mão. Nesse dia, as forças policiais e os militares feriram vários cidadãos e efectuaram dezenas de detenções.
Cafunfo é a única região onde o governo recorre sempre às FAA para reprimir manifestações, por mais insignificantes que sejam.
Folha 8 com Lusa